Pessoal,
Estou publicando aqui no Aerolitos este texto, que escrevi há cerca de dois anos! Trata-se de uma crônica (ou de um ensaio - vocês que sabem) sobre os pequenos conflitos que travamos com as pessoas. Comentem dizendo o que acharam!
Rafael
A Colisão
Mais uma tarde de férias, mais uma caminhada pela av. Paulista. Passando em frente ao Top Center, ocorreu comigo um fato corriqueiro, mas que me fez pensar em algumas coisas.
Sempre gostei de caminhar, é minha forma de terapia. Fico pensando na vida, falando sozinho (sempre faço isso), observando os carros. Mas desta vez foi diferente. Por incrível que pareça, eu estava atento em meu caminho. Foi quando visualizei, a cerca de 10 metros, uma mulher de aproximadamente 30 anos, de estatura baixa e que carregava uma pequena pasta (talvez uma bolsa, não estou certo em relação a isso). Ela caminhava em minha direção, mas não como se viesse a meu encontro... Ela caminhava em minha direção.
De repente, estávamos em rota de colisão. Percebi que, se eu não alterasse meu passo ou parasse, nos chocaríamos, mas mesmo assim o mantive. Ela também me viu. Aqueles segundos que antecederam ao choque pareciam o anunciar de uma guerra. Indianos e paquistaneses, judeus e palestinos, palmeirenses e corinthianos. Exércitos armados nas fronteiras, parados esperando o movimento do inimigo. Simplesmente nos encarávamos e avançávamos, um tentando intimidar o outro, levando-o a mudar seu curso.
Neste instante os carros que passavam já não interessavam mais, nem o farol, nem o yakissoba vendido ao lado, no ponto de ônibus. Foi como se o tempo tivesse congelado para observar aquele momento. Uma questão de honra, um duelo em um western. Xerife e ladrão em busca de auto afirmação! Não havia como parar, não havia como renunciar àquele pequeno pedaço de calçada que estava um passo à nossa frente. Ele nos pertencia, aquele espaço nos pertencia, porém só podia ser ocupado por um de nós. Mantive meu passo firme, ela fez o mesmo. Nos chocamos. Sua pequena pasta caiu no chão. Guerra empatada, sem vencedores nem vencidos.
Coisas pequenas e banais podem tomar outra dimensão dependendo do contexto em que são analisadas. Fiquei me perguntando o porque daquilo tudo. Por que eu simplesmente não desviei e deixei a mulher passar? Por que ela não fez o mesmo? Aqueles segundos que antecederam ao choque realmente pareciam eternos.
Vivemos em um mundo que nos padroniza, que nos controla de uma forma ao mesmo tempo cruel e extasiante. Usamos as mesmas roupas, comemos as mesmas comidas, realizamos os mesmos trabalhos, dia após dia. A personalidade é substituída pelo inconsciente coletivo. A noção de justiça desaparece quando confrontada com o "politicamente correto". Somos anulados diariamente, anulamos as outras pessoas, que nos anulam, e assim sucessivamente. "O que será que vão pensar?" "Será que eu serei excluído?"
Talvez isso explique a violência. Não violência no sentido mais usado da palavra, mas a violência que cometemos todos os dias contra nossas próprias personalidades, quando acordamos em uma hora que não queríamos acordar, vestimos uma roupa desconfortável e nos dirigimos a um lugar onde não queremos ir. E fazemos tudo isso acreditando que, na verdade, queremos esta vida.
Nos iludimos com os sonhos do "inconsciente coletivo": carreira, dinheiro, prestígio, achando que essas coisas podem nos libertar da violência que cometemos contra nós mesmo. E em busca disso, nos violentamos cada vez mais. Somos livres porque não temos escolha e nesta liberdade imposta está a nossa vitória, já escreveu Camus (ou foi Sartre? - ah, quem liga?).
Assumimos cada vez mais nossos personagens e nos esquecemos de nós mesmos. Os poucos que conseguem alcançar o topo, o 'objetivo coletivo' se perguntam: "E agora, o que eu faço?" Os outros continuam com seus papéis. E qualquer pequeno obstáculo pode transformar-se em uma muralha. E uma mulher que caminha a cerca de dez metros de distância pode se tornar sua inimiga.
Talvez essa manifestação de violência, agora sim a violência propriamente dita, ou até o desprezo pela presença do outro, a convicção de que ele deve desviar seu caminho por nossa causa pode ser entendida como uma manifestação daquele espírito escondido atrás da máscara, do terno, da gravata, dentro da pasta, aquele espírito que grita: AlÔOOOOOOO!!! eu sou humano! eu estou aqui! Pelo menos neste breve momento se rompe a condenação ao uso do instinto. Mesmo que por apenas alguns segundos, este assumiu seu lugar de direito: companheiro da razão, não escravo dela. Por um segundo, fomos apenas humanos, apenas duas pessoas que disputam o mesmo espaço.
A disputa por um mesmo pedaço de calçada poderia ser a mesma vaga no mercado de trabalho, no estacionamento do super mercado. Poderiam ser também dois amigos que disputam a mesma namorada. O homem vive tentando contrariar a natureza, tentando negar a velha máxima da física, de que dois corpos não ocupam o mesmo lugar. E descobrindo, mais uma vez, que tal lei não pode ser ignorada, negada e, muito menos, alterada. Mas esta pequena auto afirmação basta para alimentar o instinto por algum tempo, apenas o suficiente para que ele se silencie e volte para seu esconderijo, para o lugar reservado para ele por nós mesmos.
Pedi desculpas para a mulher, que abriu um sorriso "vitorioso": O garoto assumiu a culpa. Seu caminho, para ela, era mais importante e seus passos mais fortes do que os meus. Ela ajeitou seu cabelo cheio de laquê, pegou sua pasta no chão e seguiu com seu passo firme. Em busca de algo que nem ela sabe. A culpa não era minha, nem dela... bem, pelo menos ela sorriu.
Continuei minha caminhada. Voltei a observar os carros, o comércio, as pessoas, seus pequenos e necessários conflitos. Pensei em algumas coisas sem importância, como por exemplo, escrever sobre isso, tomei um mate com guaraná, peguei o metrô na Trianon-Masp e voltei pra casa. Que bom! Perdi essa guerra. Mas foi uma boa batalha.
Rafael Pereira de Menezes
10/01/2002