27.9.05

Ética (viva o Brasil!)

É praticamente impossível conseguir travar uma discussão sobre política sem que alguém comece a vomitar palavras de ordem sobre ética. Isso é sim de se estranhar, já que o comportamento ético deveria ser um pressuposto na vida pública, jamais um diferencial. Mas isso não ocorre nesses tristes trópicos. Acontece que o povo brasileiro não é ético (por essas e outras nosso herói nacional é macunaíma), e procura aplacar sua fome de comportamento moral no discurso dos políticos.

Eu tinha apenas 10 anos de idade durante o processo de impeachement de Fernando Collor de Mello. Lembro-me, como ontem, de ver o Pedro Collor feliz da vida, exibindo um certificado de sanidade mental que o qualificava para acusar seu irmão das piores barbaridades que alguém pode cometer com o dinheiro público. A oposição aplaudia, a mídia aplaudia e, consequentemente, a turba irracional também aplaudia. Naquela mesma época, motivado por esses fatos, surgiu o famoso movimento pela ética na política.

Poderia aqui tentar definir ética. Não vou buscar definições de grandes filosofos, porque isso é muito Marilena Chauí pro meu gosto. Ética, na minha definição, é um conjunto de regras ideais de comportamento para obter uma convivência social desejada. Só isso. Como a definição é curta, cabe então perguntar qual ética foi e, de certo modo, ainda é apregoada pelas nossas "cabeças pensantes". Já que se trata apenas de uma forma de comportamento desejado, cabe perguntar qual o conteúdo desse comportamento desejado. Em outras palavras, qual a sociedade que surgiria se todos seguissem determinado modelo ético.

Existem várias propostas éticas. Para citar algumas: Aristotélica, eclesiástica, protestante (que, segundo Weber originou o capitalismo da forma que conhecemos hoje), militar, familiar, etc. temos até uma ética proletária e um estado ético gramsciano...

Voltemos à Era Collor. A "galera enlouquecida" foi unânime em apontar Pedro Collor como um paradigma de ética. Um homem que denunciou o próprio irmão, causando - ao que tudo indica - a morte da própria mãe por causa disso. Dá pra concluir de tal comportamento que as razões de Estado deveriam estar acima de todos os demais elementos da vida em sociedade, inclusive das relações familiares. Temos um modelo de ética coletivista, no sentido de que o interesse público, que é abstrato e indireto, se sobrepõe sobre as relações familiares tradicionais.

Basicamente, dá para ver que o modelo ético adotado pela coalizão que tomou o poder após a queda do Collorido, e que se mantém nele até hoje, visa uma sociedade mediada pelo Estado, onde as relações amorosas, religiosas e familiares sejam medidas e julgadas pelo tal do "interesse coletivo". Assim, se premia a barbaridade da delação entre pessoas do mesmo sangue em prol de algo pequeno como o dinheiro público.

Pequeno porque esta sociedade se formou com base na família. Para a ética estatista vencer, é necessário destruir as estruturas que permitiram o seu surgimento. Para isso, nada como fomentar as diferenças de gênero, de raça, de classe, de sexualidade. Qualquer ser humano é classificável dentro dessas categorias frias e impessoais. Para defender as categorias, chamadas propositalmente por "minorias", são criados órgãos de vigilância e proteção. As relações entre pais e filhos são vistoriadas pelo Juizado de infância, as conjugais pela delegacia da mulher, e por aí vai.

Premiar a delação é insuportável em qualquer sociedade, já que gera a desconfiança generalizada em seu seio. Quando não se pode confiar em mais ninguém, as pessoas deixam de se unir e reunir. O divórcio substitui o casamento, as relações impessoais substituem a amizade. E o sentimento de classe substitui a empatia.

Uma ética que defende o interesse público a despeito do privado tem ainda o estranho efeito de fazer as pessoas ignorarem a conduta pessoal de alguém que vai gerir a coisa pública. O raciocínio parece ser algo do tipo "a vida pessoal de tal pessoa não interessa, desde que ele seja ético". Mas só se verifica a conduta moral de alguém em sua vida pessoal. Um homem que não respeita sua família dificilmente terá escrúpulos em desviar dinheiro público. Um homem que praticou crimes políticos no passado dificilmente respeitará a democracia no futuro.

Só que "a galera enlouquecida" não percebe isso. Não percebe que, quanto mais ela permite a deterioração do seu tecido social pelas investidas estatais, mais ela se torna dependente do poder estatal. Quando as pessoas precisam de proteção estatal para solucionarem seus problemas relacionais mais comuns, a delação se torna desejável e cada indivíduo é um inimigo em potencial. A proteção dessa rede de assitência estatal se torna mais importante do que a proteção das relações pessoais, já que estas agora que dependem daquela. Se forma um círculo vicioso onde o poder do Estado só cresce e a capacidade de se relacionar só diminui.

Não estou dizendo que as denúncias aos desmandos dos políticos sejam indesejáveis. Muito pelo contrário. O que me espanta é a transformação do denuncismo em bandeira política e a ética do denuncismo em objetivo a ser alcançado pela sociedade. Não me assusa o PT passar anos falando em ética (só pra dar um exemplo, mas sem dizer que essa postura é só do PT), o que me assusta é o fato de que o discurso petista não tem muita coisa a oferecer além da promessa de um estado ético.

Então viva Pedro Collor! Viva todos os políticos que chegaram ao poder em Brasília por meio do denuncismo barato e da oposição sistemática. Viva todos aqueles que se organizam em ONGs para dividir, pesar, classificar e catalogar os membros da sociedade como animais. Viva o Brasil!